Os teólogos do judaísmo não interpretam a passagem sobre o "rei de Tiro" em Ezequiel 28 como uma referência à queda de Lúcifer por várias razões baseadas na hermenêutica judaica e no contexto histórico do texto. Aqui estão alguns dos principais motivos:
1. O Contexto Histórico e Literal do Texto
Ezequiel 28 fala diretamente sobre o "rei de Tiro", que era um monarca humano, provavelmente Itobaal II, um dos reis da cidade-estado fenícia de Tiro no século VI a.C. O profeta Ezequiel condena a arrogância do rei, comparando-o a Adão no Éden e a um querubim exaltado, mas que foi derrubado devido ao seu orgulho e corrupção.
No judaísmo, as profecias devem ser lidas dentro do seu contexto original, e não reinterpretadas como alegorias de figuras demoníacas.
2. Ausência de Doutrina sobre Lúcifer como Anjo Caído
O conceito de Lúcifer como um anjo caído que se tornou Satanás não faz parte da teologia judaica tradicional. No judaísmo, Satan (שָּׂטָן) não é um inimigo de Deus, mas um adversário ou acusador que trabalha sob a autoridade divina (como visto no livro de Jó).
A ideia de Satanás como um anjo rebelde que caiu do céu se desenvolveu mais tarde no cristianismo, influenciada por textos como Isaías 14:12 e Apocalipse 12:7-9. O judaísmo, no entanto, não vê essas passagens como conectadas.
3. Uso de Linguagem Poética e Metafórica
O capítulo 28 de Ezequiel usa linguagem figurativa para descrever o rei de Tiro de forma grandiosa e quase mitológica. Por exemplo, ele é chamado de "querubim ungido", alguém que estava no "Éden, jardim de Deus". Essa linguagem hiperbólica é comum na literatura profética para enfatizar a posição elevada do governante e sua subsequente queda por arrogância.
Os estudiosos judaicos entendem essas expressões como metáforas políticas e espirituais, não como uma descrição literal de um ser celestial.
4. Diferença entre "Lúcifer" e o Rei de Tiro
A ideia de que "Lúcifer" caiu do céu vem, na verdade, de Isaías 14:12, onde se menciona "helel ben shachar" (הֵילֵל בֶּן שָׁחַר), que significa "estrela da manhã, filho da alva". Esse versículo se refere ao rei da Babilônia e sua queda, não a Satanás.
Os primeiros cristãos (especialmente na Vulgata Latina) traduziram "helel" como "Lúcifer" (portador da luz) e depois associaram essa figura a Satanás. Mas os teólogos judeus continuam vendo o texto apenas como uma metáfora para governantes humanos orgulhosos.
No judaísmo, Ezequiel 28 não tem relação com a queda de um anjo rebelde chamado Lúcifer. A passagem é vista como uma crítica ao rei de Tiro e um alerta contra a arrogância e a idolatria. A interpretação cristã posterior, que liga esse texto à queda de Satanás, não tem base no pensamento judaico tradicional.
Como os Cristãos Interpretaram?
Os Pais da Igreja tinham diferentes interpretações sobre Ezequiel 28 e Isaías 14, mas muitos deles viam essas passagens como referências à queda de Satanás, diferentemente da visão judaica. Aqui está um resumo do que alguns dos principais teólogos cristãos antigos pensavam:
🔹 1. Orígenes (c. 185–253 d.C.)
Orígenes foi um dos primeiros teólogos cristãos a interpretar Ezequiel 28 e Isaías 14 como referências à queda de Satanás. Ele via o rei de Tiro e o rei da Babilônia como símbolos de um ser espiritual maior: Lúcifer, que caiu do céu devido ao orgulho.
📖 Citação de Orígenes:
"Quem antes era chamado de Lúcifer e brilhava mais do que as estrelas, após sua queda se tornou o diabo e Satanás." (De Principiis, Livro I, 5.5)
Orígenes acreditava que Satanás era originalmente um anjo glorioso, mas caiu porque desejou usurpar o lugar de Deus.
🔹 2. Tertuliano (c. 160–225 d.C.)
Tertuliano também via Ezequiel 28 como uma descrição velada de Satanás. Ele argumentava que o texto descrevia um ser que estava no Éden e que havia sido expulso, o que, para ele, fazia sentido como referência ao diabo.
📖 Citação de Tertuliano:
"Aquele que foi expulso do paraíso e caiu na terra é o mesmo que arrasta consigo os ímpios." (Contra Marcião, Livro II, 10)
🔹 3. Santo Agostinho (354–430 d.C.)
Agostinho reconhecia que Ezequiel 28 falava primariamente sobre o rei de Tiro, mas também acreditava que poderia haver um significado mais profundo sobre a queda de Satanás. Para ele, Satanás era um anjo que caiu por orgulho, e esses textos proféticos podiam apontar simbolicamente para essa queda.
📖 Citação de Agostinho:
"O diabo não permaneceu na verdade, pois em seu orgulho desejou ser Deus e caiu." (Cidade de Deus, Livro XI, 15)
Agostinho associava a queda de Lúcifer ao pecado do orgulho e ligava a ideia de "estrela da manhã" de Isaías 14 à queda do anjo rebelde.
🔹 4. Gregório Magno (540–604 d.C.)
Gregório Magno reforçou a ideia de que Ezequiel 28 e Isaías 14 falavam tanto de reis terrenos quanto de Satanás. Ele via a história da queda de um governante orgulhoso como uma prefiguração da rebelião do diabo.
📖 Citação de Gregório Magno:
"Satanás foi um querubim glorioso que caiu por seu próprio orgulho e, como o rei de Tiro, quis se exaltar acima de Deus." (Moralia in Job, Livro II, 4)
🔹 Conclusão
Os Pais da Igreja geralmente viam Ezequiel 28 e Isaías 14 como tendo dois níveis de significado:
1️⃣ Nível Histórico – Falam sobre reis humanos (rei de Tiro e rei da Babilônia).
2️⃣ Nível Simbólico – Apontam para a queda de Satanás, que era um anjo glorioso e foi expulso do céu por orgulho.
Essa interpretação influenciou fortemente a doutrina cristã medieval sobre a origem do diabo. No entanto, essa visão não é aceita no judaísmo, que lê esses textos apenas em seu contexto histórico original.